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A Salvação Veio do Espaço (Parte 2)



Não sei exatamente por quanto tempo fiquei desacordado antes de abrir os meus olhos. Senti que não conseguia respirar regularmente, a escuridão era total, mas eu conseguia fabricar a luz da minha ilusão. Tudo o que eu queria era não estar mais presente no mundo terreno, queria pairar eternamente em um plano onde não houvesse consciência e, não, não existisse luz nenhuma; pelo menos era isso o que eu imaginava ser a morte: a ausência de luz e consciência, uma viagem espacial sem destino, sem volta e sem dor. Mas não era isso o que estava acontecendo comigo. Senti os meus olhos arderem com a poeira dos malditos pedaços dos prédios corporativos. Percebi entre os meus dedos as bolinhas de concreto provocando para que eu fizesse com elas a mesma coisa que fazia com minhas moedas quando estava nervoso, sobre os dedos vai, sobre os dedos vêm. Eu estava vivo. Consegui mover os entulhos laterais com os meus cotovelos e alavancar o peso do meu corpo, pisando nos blocos de concreto. Meu braço rompeu o último farelo de concreto e já podia ser observado por qualquer equipe de resgate. Mas havia um grupo de resgate? Alguém ainda respirava na superfície? Saltei para fora como um tubarão branco transborda do oceano para abocanhar uma gordurosa foca, mas, ao dar a primeira mordida, constatar a frustração de estar mordendo um bicho humano deitado sobre uma “tábua de foam”. Eu fui enganado. O tubarão foi enganado. Todos somos enganados; o tubarão ficou sem comer e eu fiquei com a vida. O pior disso tudo foi que os malditos destroços fedorentos dos prédios de escritórios corporativos me empurraram de volta. Diabos! Não há como me livrar deles? Batendo a poeira com as mãos, olhando para os lados e não enxergando nada além de destruição e uma cortina de fumaça intensa que, ao me envolver, criou a ilusão de estar me transportando para a alvorada de um pântano da tristeza. Tirei a camisa, envolvi a minha face e amarrei as mangas na nuca. Pus-me a explorar o que eu pensava ser uma quimera. Vaguei durante horas, mas não encontrei ninguém, nem mesmo gritos implorando por ajuda entre os escombros. A temperatura estava muito alta, eu precisava encontrar água o quanto antes, antes que eu morresse. Mas não era exatamente isso o que eu queria? A frase “cuidado com o que você deseja” nunca fez tanto sentido, eu queria morrer. No cair de um asteroide me pareceu confortante, sucumbir por falta de água seria covardia da minha parte. Eu não sou covarde! Será que foi um asteroide mesmo? Eu não sou especialista, mas sei o que acontece depois da caída de um asteroide: uma tempestade de fogo se espalharia pela atmosfera e vaporizaria qualquer forma de vida em seu caminho. Imagino que, se alguém sobrevive ao impacto, não irá resistir à temperatura infernal e vai ser assado vivo. A única explicação plausível que encontrei foi a de que ele tenha caído centenas de quilômetros daqui. Vaguei por mais um tempo, até que encontrei um velho Fiat Uno Way azul. Consegui entrar no carro estuporado e já observei alguns CDs espalhados sobre o banco direito. Por sorte o Cd Player estava funcionando, introduzi o EP da banda O Doce, deixei o volume no máximo e me sentei sobre uma árvore derrubada pelo impacto do “fenômeno”. Lá estava eu com meus devaneios de novo. Me transportei para a época da minha adolescência, quando eu e meus amigos construímos uma pista para andar de bicicleta em um terreno baldio no centro da cidade. Foi um trabalho árduo e prazeroso aquele, mas ficou uma bela pista, com 7 rampas, curvas fechadas e retas irregulares. Fazia um belo domingo ensolarado, quando as sirenes das viaturas torturaram os nossos ouvidos, e a chegada do proprietário do terreno nos fez lembrar uma criança mimada tomando um brinquedo da mão do seu amiguinho de escola, na escola, com o brinquedo da escola, dizendo pertencer somente a ele. — Vocês não tem o direito de invadir o meu terreno. — disse o proprietário —. Aproveitaram que eu não moro aqui na cidade, e fizeram uso de uma propriedade privada. Vocês já foram avisados antes, não sabem que é crime? — Eu não tive outra alternativa senão pedir o apoio das autoridades competentes para acabar com isso — continuou o proprietário mimado —. Se vocês não saírem por bem, vão sair por mal, pois eu tenho a lei do meu lado, não vou admitir o meu terreno ser invadido por um bando de pirralhos desocupados, eu tenho a lei, eu tenho a lei!

Eu pensei: ele diz que se a gente reagir, vamos sair à base de tapas, que violência gera violência, que manda quem pode, obedece quem tem juízo. Eu acho que educação gera educação, bom senso gera harmonia, imperatividade gera reação e reação não é violência. Ainda me veio em mente o privilégio de não ser encarcerado com os presos “comuns” pelo fato de possuir curso superior. Mas isso tudo não fazia sentido para mim. Se uma pessoa tem curso superior, teoricamente ela não teria a capacidade de discernimento aguçada? Não teria ela a obrigação de dar um exemplo positivo? Seria justo ela ter uma pena maior ainda dos que cometem delitos por necessidade? Um político com curso superior não deveria ser honesto em sua totalidade? Não somos todos iguais? Os mais afortunados não deveriam auxiliar os menos? Eu entendi: as sardinhas são enlatadas e os tubarões são comidos por outros tubarões. — Vamos lá! O que vocês estão esperando? Tirem esses vagabundos da minha propriedade. Façam isso ou perderão seus empregos, eu tenho contatos, tenho influência, eu tenho a lei! Entre os policiais no local, havia o pai do meu amigo, meu amigo estava ali com a gente. — Tenho certeza de que podemos resolver isso de uma forma mais tranquila — disse o pai do meu amigo —. O senhor vai até o fórum e assina um documento em que não se responsabiliza por qualquer eventual acidente que possa acontecer com os adolescentes. Vamos falar com o prefeito para pedir que ele ajude na infraestrutura do local e permita que toda a população usufrua do espaço, em troca, você fica isento do IPTU e outros impostos sobre o terreno, tudo isso até você decidir construir algo no local, ou vender. — Seu policialzinho de merda, esse terreno é meu, não vou aceitar isso, se eu quiser ele aí produzindo capoeira e proliferando o Mosquito da Dengue, eu vou deixar. Nisso, todos os policiais se indignaram. De repente um punho fechado chocou-se contra a face do dono do terreno, foi um tombo inesquecível para todos nós. — Cala essa maldita boca. — pai do meu amigo —. Nós estamos cansados das ordens de pessoas como você, não vamos mais ficar entre vocês e as pessoas que estão lutando por seus direitos, meu filho está aqui, os amigos dos meus filhos estão aqui, não vou permitir que você os chame de vagabundos pelo simples fato de eles estarem usando um terreno abandonado para se divertirem. Eu posso perder o meu emprego, mas não perderei a minha dignidade. Nós somos protetores da população, não de lixos humanos. Gente como vocês nos colocam na linha de frente contra a população, somos nós que levamos a culpa e somos chamados de covardes, tudo isso para cumprir ordens de porcos nojentos como o senhor. Levante! Tenha ética! Seja honesto! Vai toma no cu! O proprietário não deu um pio. Os policiais foram embora, não antes de pagar uma rodada de refrigerante para nós. No dia seguinte, o pai do meu amigo perdeu o emprego, os colegas dele receberam uma rigorosa advertência, o terreno recebeu uma bela fortificação de madeira, meus amigos e eu ficamos jogando fliperama no bar do Oflodor. “Quer pitar um? ” Ouvi um cara mais velho ao meu lado. Ouvi uma voz rouca e distante e despertei da minha viagem ao passado. — Você aí, chega mais perto. Levantei assustado e olhei para todos os lados, não vi ninguém. Me aproximei do Uno azul para ter certeza de que não era o barulho do rádio, não era, o EP do O Doce já havia terminado. Olhei novamente para os lados e nada. Quando eu pensava estar ouvindo coisas, a voz soou novamente. — Venha, não tenha medo, chega mais perto. — Você não quer saber a verdade? Uma criatura surgiu em meio à fumaça. Meus olhos só poderiam estar me pregando uma peça, eu não podia estar vendo aquilo. As patas mais pareciam a de um porco, as canelas eram grossas e curtas, o tórax era branco e cheio de curvaturas, os braços eram longos e as mãos possuíam dedos longos e finos, a cabeça era gorda e possuía um focinho que mais lembrava o de um gambá. A criatura se aproximou mais, percebi que os olhos eram grandes, arredondados e amarelos. — Já faz tempo que observo você. — a criatura parou —. Não tenha medo, me siga e compreenderá tudo. Eu fiquei assustado e fascinado, mais fascinado que assustado. Resolvi seguir aquela criatura bizarra. O que eu tinha a perder?

Continua...

* Desenho/Ilustração por Murilo Salini. * Texto sem correção ortográfica adequada. * A falta do uso da virgula em algumas sequências de palavras foi proposital, mas sem alterar o sentido dos meus escritos imbecis. Gosto do modo de como os escritores Beat prolongam as frases, sem frescuras e sem preocupação com as formalidades, que para a maioria é inflexível. * Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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